Flavio Daflon fala sobre o acidente no Babilônia – RJ
Tempo de leitura: 5 minutos
Fiz um relato do que eu vi na sexta, 30 de maio, no Babilônia. Como escrevo no final, espero que sirva de alerta para todos nós.
Eu havia dado uma aula, um top rope, e estava saindo do Babilônia por volta das 13 horas. No estacionamento dos funcionários do Pão de Açúcar vi alguns turistas apontando para o Babilônia e dizendo que alguém caiu. Não levei a sério até ver o senhor que trabalha na estação correndo e falando em bombeiros. Nessa hora olhei para a parede e vi um escalador na metade do Reinaldo Behnken e outros dois pendurados, juntos, entre o Entropia e o Reinaldo Behnken, a 20 metros do chão. Dali já deu pra ver que a coisa era séria. A primeira coisa que me veio a cabeça é que eles estavam precisando de ajuda e voltei a entrar no Babilônia. Na portaria o senhor já estava chamando os bombeiros então eu liguei pra Cintia em casa e pedi que ela ligasse para os guias da Aguiperj para descobrir se alguém estava próximo.
Quando cheguei na base haviam dois escaladores que eu não conheço. Como eles não tinham tomado nenhuma iniciativa em subir eu pedi corda, costuras e fitas a eles, já que estava com pouco equipamento por causa da aula de top rope. Um deles me deu segurança e eu subi pela Reinaldo Behnken. Nesta hora ainda não havia chovido. Subi na Reinaldo mais alto que os meninos que haviam caído já que queria descer em diagonal até chegar onde estavam. Para descer fixei a minha corda, não aquela que peguei emprestada e tinha usado para guiar.
Chegando neles a cena era chocante. O Marcos estava inconsciente e o Julio coberto de sangue, a cabeça aberta e uma fratura exposta no tornozelo. Os dois estavam sem capacete e com as cordas bastante enroladas neles. A primeira coisa que fiz foi prender os dois em mim, pois se já caíram até ali poderiam cair ainda até o chão. Não sabia onde a corda deles estava presa. Gritei para o escalador que eu via, cerca de uma enfiada acima, perguntando se as cordas estavam fixas. Não consegui descobrir qual delas estava fixa e qual estava solta. Depois ele me gritou que a colorida estava fixa e eu prendi os dois nesta corda também através de prusiks.
Eu falava pro Julio que estava tudo bem e que ia ajudá-los a descer. Ele dizia que estava mal, olhava para a fratura no pé, e queria descer. No rosto dele só dentro dos olhos não havia sangue. Ao redor havia material deles espalhados, uma mochila suja de sangue, um chinelo e outras coisas.
Mesmo assim imaginei que o Julio não estivesse tão mal já que pareceu bastante consciente. Com eles presos fui dar uma olhada no Marcos (os nomes soube bem depois) que estava com o rosto para baixo tampado em parte por um dos braços. Não consegui afastar seu braço, pois estava enroscado com as cordas. Foi tentando abrir espaço para que ele ficasse numa posição mais cômoda (lembrando dos cursos de primeiros socorros) e pudesse ter as vias aéreas desobstruídas – já que estava inconsciente – que eu gelei ao ver como uma corda passando por dentro de um mosquetão estava absurdamente apertada em sua nuca, puxando inclusive a pele para dentro do mosquetão. O pavor me veio. Imaginei que poderia estar sem respirar. Não tenho certeza disso. Falaram que ele ficou enforcado. Também não tenho certeza disso. Não verifiquei o quanto aquele pedaço de corda apertava, ou se apertava sua garganta. O braço com três ou quatro voltas de corda enroscada próximo a cabeça não davam espaço. Eu nem quis ver. Tentei afrouxar a corda, tentei desclipar o mosquetão que tencionava a corda, cheguei a tentar puxar ele para cima pelo loop do baudrier. Não havia um mínimo platô, era tudo vertical. Cheguei até a pedir pro Julio me ajudar, mas é claro que ele não podia. Na tentativa de liberar o Marcos meus movimentos incomodavam o Julio que gritava de dor.
Foi nessa hora que eu vi os bombeiros na base. Gritei por helicóptero. Um dos bombeiros me disse que ele não chegaria ou iria demorar. Gritei por uma faca, disse que a corda estava no pescoço do Marcos. No nervosismo esqueci que eu havia escalado com minha mochila nas costas, justamente porque dentro dela tinha um estojo de 1° socorros. Nem passou pela minha cabeça que estava com a mochila e que dentro do estojo havia uma lâmina.
De qualquer forma o bombeiro amarrou prontamente uma faca na minha corda e assim cortei a corda acima do pescoço do Marcos, lembro de antes ter verificado se realmente tinha prendido ele. Não lembro se foi preciso cortar mais algum pedaço para liberar o braço. Mesmo assim Marcos continuou inconsciente. A primeira coisa que pensei foi em descer com ele para deixá-lo na mão dos bombeiros, talvez ele precisasse de reanimação. Sabia que nesse caso o tempo era decisivo. Verifiquei de novo se ele estava preso em mim e cortei tudo que o prendia. Cortei as cordas algumas vezes porque sempre tinha alguma coisa que o prendia. A última corda cortada lembro que foi difícil, não estava tencionada e o peso do Marcos já me puxava para baixo. Com ele inconsciente seu tronco e a cabeça ficaram soltos para baixo com o seu baudrier preso ao meu loop. Não me sobrou fita para passar em seu peito e usei minha mochila para colocar em suas costas e prender as alças na frente com um mosquetão em mim. Assim ele ficou numa posição melhor e mais confortável para descer.
Desde que montei o meu rapel já estava com o auto-blocante, não o desmontei, nem o freio, em hora nenhuma. Foi assim que desci com ele. Os bombeiros já estavam com uma maca pronta na base daquele diedrinho em móvel à esquerda da base da Reinaldo. Avisei os bombeiros que ele devia estar sem respirar. A partir daí não acompanhei mais o Marcos, descansei por um breve tempo e subi prussicando de volta ao Julio. Ele estava mais fraco, tombado no baudrier. Gritei que estava subindo e que ia descer com ele. Ajudei-o a levantar, ele pediu de novo para descer. Eu disse que estava montando a descida. Com tudo pronto cortei as cordas que o prendiam. Não me recordava estar num pêndulo significativo. Com o peso do Julio no meu baudrier e a pedra molhada (em algum momento em que ajudava o Marcos choveu), nós dois pendulamos descontroladamente para a direita. Me lembro de ter ficado lateralmente com ele escorregando até a corda parar. Vi a faca que estava fechada no meu bolso voar e escutei pessoas exclamando com nosso pêndulo. O Julio ficou bem, apesar dos gemidos. Como ele estava com um fita e um mosquetão passando pelo pescoço-braço, prendi seu tronco próximo a mim para descer com ele mais confortável.
Na base ele desceu, literalmente, em cima da maca. Não foi fácil estabilizar ele na maca já que o terreno era inclinado e ele reclamava de dor no pé, no joelho e nas costelas. Ainda foi preciso soltar um pedaço de corda que estava nele, preso ao freio e ao auto-blocante. Os bombeiros o levaram e por algumas vezes ouvi ainda seus gritos, mais o pior já havia passado.
Da base não conseguia ver o outro escalador (Rodrigo) que estava ainda na metade da parede. Sem saber se ele conseguiria descer de forma segura, subi de novo prussicando. Ele já estava montando o rapel com o que sobrou das cordas e veio até onde eu estava. A chuva havia aumentado. Foi nessa hora que eu soube que haviam outros dois escaladores mais em cima e sem corda. Enquanto nos preparávamos para descer chegou o helicóptero do CGOA e em seguida o dos bombeiros que os retirou.
Muitos me perguntaram se eu vi alguma coisa que pudesse elucidar o que aconteceu. Não vi nada, nem procurei. Eram dois escaladores acidentados e um emaranhado de equipamentos, não quis saber o que aconteceu, não havia tempo.
Que este acidente sirva de alerta para todos nós. Escalada não é futebol. É um esporte de risco. Quando se fala para checar duplamente procedimentos e equipamentos é porque isso pode salvar nossas vidas. Precisamos estar atentos seja escalando, seja rapelando. Lembrem do “climb smart”: sua segurança é sua responsabilidade.
E quanto ao rapel em simultâneo, será que vale a pena?
O Júlio está bem, já está em casa.
Abraço,
Flavio Daflon