Conclusões sobre o acidente na Ana Chata
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O Montanhista Eliseu Frechou, que esteve presente nas operações de resgate do acidente ocorrido no ultimo domingo com a escaladora Chang Wei, descreve suas conclusões pessoais.
O texto foi retirado do blog do autor: http://eliseufrechou.blogspot.com/
Neste final de semana passado choveu bastante em São Bento do Sapucaí. Na verdade o tempo estava bem ruim desde quinta-feira passada. Poucos escaladores de outras cidades vieram escalar aqui e a maioria foi para falésias abrigadas da chuva como Divisa e Olhos.
Eu estava em casa na tarde de domingo quando o Sargento Osmar, velho conhecido do Corpo de Bombeiros me ligou e pediu para que me preparasse para um resgate na Ana Chata. Imediatamente liguei para o Márcio Bruno, não consegui encontrar o Rogério Santos, mas consegui falar com o Leandro Costa “Pardal”. Arrumei todo o equipamento, esperei a viatura da PM vir aqui pegar a maca que foi doada pela FEMESP para estas ocasiões. Saímos no carro do Marcelo daqui de casa direto para a Delegacia onde conseguimos o apoio da Polícia Civil que tem uma Land Rover para subir a estrada o máximo possível. Passamos na Santa Casa para pegar luvas e seguimos em direção ao sítio do Sr. Chico Bento, local combinado para esperarmos o Corpo de Bombeiros, que são os resgatistas oficiais. Lá chegando ouvimos dos companheiros da Chang que ela havia falecido e seu corpo estava na base da via, onde já estavam o escalador Lipe Forbes e mais duas pessoas.
Conheci Chang Wei muito rapidamente no ano passado quando ela esteve no alojamento da Montanhismus. Desde então nunca mais a vi.
No domingo, apesar das condições desfavoráveis, Chang, Mariana, Renata e mais um rapaz que não sei o nome, resolveram escalar a Ana Chata pela rota Peter Pan. Todos escalaram até a P2 da via. A Chang tomou a ponta da corda e passado pela P3 seguiu até a P4. Neste momento Chang resolveu retornar à P2, realizou um rapel, recuperou a corda e no segundo rapel a corda se desprendeu do ponto de ancoragem e ela caiu até a base da montanha, 80 metros abaixo.
Esperamos a viatura do Corpo de Bombeiros chegar, que trouxe amigos de outras ações como o bombeiro Fukuoka e Carlão, mais outro soldado. Subimos todos e resgatamos o corpo. Ontem, como a chuva cessou, eu e o Rogério Santos retornamos à montanha para inspecionar a via.
Análise
Minha suspeita do que se deu na Ana Chata é conseqüência do que vi na base da montanha com o que a Mariana contou à mim e ao Pardal, e o que eu e o Rogério Santos vimos ontem (09/04) na via é a seguinte:A escaladora Chang, talvez querendo ganhar tempo, resolveu linkar a 3ª. e 4ª. enfiadas da Peter Pan e saindo da P2 da Peter Pan, passou pela P3 e foi até a P4 (comum à via dos Lixeiros). Como ao alcançar este ponto ela resolveu descer, e a P4 é muito diagonal em relação à P3, ela retornou à segunda e última chapeleta de costura da 4ª. enfiada e montou o primeiro rapel.
Primeiro rapel: Aqui já foram constatados dois erros: primeiro e mais grave, o nó estava errado. Não conheço e nem consegui identificar que nó ela usou. Todavia este nó segurou a laçada fechada, pois existia bastante folga dos dois lados. Segundo erro: a escaladora realmente arriscou ao rapelar em uma única chapeleta de ¼”. Esta é uma proteção muito fina, para a finalidade de orientação da corda, jamais para ser usada como ponto de rapel. Esta chapeleta está no local apenas para evitar pêndulo do segundo (tanto na Lixeiros quanto na Peter Pan), num trecho muito tranqüilo para quem guia estas vias, mas chato para quem vem de segundo. Felizmente o parafuso de 1/4 “ suportou o rapel.
Foto do cordelete na 2ª proteção da quarta enfiada da Peter Pan: onde há a junção com a Lixeiros: Cordelete com 45cm de comprimento, com uma ponta derretida e a outra desfiada 7cm. Fechada com um nó desconhecido. A localização e estado dos cordeletes procedem com a versão da Mariana nos contou na Santa Casa de São Bento do Sapucaí. Ela nos falou não saber ao certo onde estão as paradas da via, mas que a Chang havia sumido até perdê-los de vista, então ao descer havia feito dois rapeis, sendo que durante o segundo houve a queda.
Segundo rapel: Segundo o que a Mariana nos contou, segundos antes da Chang cair, ela comentou com os companheiros que a aguardavam na P2 da Peter Pan: “Não estou confiando nesse cordelete”. O cordelete se encontrava aberto e na posição que está nas fotografias. Note-se que esta parada é tripla. Mesmo assim, Chang mais uma vez arriscou-se escolhendo apenas uma chapeleta e ignorou as outras – primeiro erro. Segundo e terceiro erros: Desta vez, a combinação nó errado – mais cordelete curto – foi fatal.
Foto do cordelete na P3 da Peter Pan: cordelete com aparência de novo, medindo 42cm de comprimento, com as duas pontas desfiadas e bastante abertas (6cm de um lado e 7cm do outro). O cordelete se encontrava aberto – sem nenhum nó.
Auto-seguro de rapel: junto ao corpo da Chang havia um cordelete marrom atado a um mosquetão, em uma das pontas havia parte de um pescador falso e a outra estava sem nó. Tanto o Márcio Bruno quanto eu notamos este detalhe. Juntando os fatos que vi acima, na via, deduzo que a Chang realmente não sabia fazer o fechamento correto dos cordeletes. Não tenho foto.
Conclusão
Como disse, no momento em que tudo isso acontecia, eu estava em minha casa, e todas estas deduções foram feitas levando em conta o que ouvimos da Mariana e o que vimos nas cenas na base da montanha ao examinar o corpo, os equipamentos que a Chang levava consigo, e agora ao repetir a via que estava preservada e não foi escalada desde o dia do acidente.
A minha conclusão depois de resgatar tanta gente machucada ou morta é de que os acidentes são conseqüências de um erro muito grotesco ou de uma série de pequenos erros.
No caso do que aconteceu com a Chang na Ana Chata, a seqüência de erros iniciou-se ao forçar a escalada num dia de clima tão ruim como estava fazendo neste domingo passado. Passou pela decisão de linkar as enfiadas 3 e 4, que apesar de pequenas, impossibilitou o contato visual da Chang com os outros companheiros, e culminou com procedimentos errados na montagem do rapel.
A cena que os companheiros de cordada da Chang e todos os que participaram do resgate do seu corpo presenciaram foram muito fortes e não vão se apagar de nossas memórias. Resta em cada um de nós um grande sentimento de impotência por não poder ter feito nada que pudesse evitar aquela tragédia.
De nossa parte, incluo aqui os escaladores pró-ativos nesta região e que ao invés de esperar e reclamar de tudo e de todos, tem, ano após ano mantido as vias seguras para que nossa comunidade tenha prazer e segurança ao escalar estas rotas, fica ainda um imenso sentimento de descaso para com a vida. Como disse acima e todos os que conhecem a via em questão sabem, as paradas da Peter Pan são todas triplas. Ao encontrarmos o corpo de Chang, notamos que ela portava ainda diversos mosquetões em sua cadeirinha. Todavia, como numa roleta russa, preferiu confiar sua vida em um único pedaço de cordelete desfiado.
Os que estão lendo este texto e me conhecem, sabem que nos meus 25 anos de montanha jamais tive sequer um acidente, nunca resgatei clientes meus – mas já realizei mais de 11 operações de resgate nesta região usando em 90% das vezes equipamentos próprios.
Gostaria que cada um ao ler este texto reflita de que nada adianta esforços como os que já aconteceram – e estão acontecendo hoje – como o GT de regrampeação de rotas na Pedra do Baú coordenado pela FEMESP, se cada um de nós não estiver preparado e responsável para consigo mesmo e seus companheiros. Esta responsabilidade começa na formação correta do montanhista ao escolher cursos e instrutores capacitados, e culmina na aquisição de equipamentos de boa qualidade e eleição de companheiros aptos a realizar todas as operações da escalada e mínimas de resgate.
Há uma linha muito tênue entre o incentivo que você ouve e que lhe dá força para realizar uma escalada e as palavras que podem lhe encaminhar para uma roubada. Discernimento, humildade e boa companhia ajudam a tomar boas decisões. O montanhismo está cheio de gente que causa e sofre acidentes e depois ainda quer ensinar os outros a evitá-los, sem nunca ter ajudado em um resgate. Gente que realiza procedimentos errados e sai vivo por milagre, e depois se gaba disso – conseguindo, por incrível que pareça, a admiração de alguns.
Caros (as) montanhistas, escolhas certas quase sempre estão ao nosso alcance, e podem fazer toda a diferença.
Como tem sido regra das ações de resgate serem coordenadas por mim, com equipamentos da Montanhismus, além do que já temos feito e continuaremos a fazer, tentaremos contribuir um pouco mais. Este acidente trouxe mais uma vez à tona o problema de ausência de um grupo de resgate em nossa região. Assim, a Montanhismus irá ajudar a minimizar o problema e organizará no mês de junho um curso de Primeiros Socorros em Áreas Remotas. Escaladores (as) que moram ou freqüentam nossa região estão convidados, podendo mostrar interesse desde já, fazendo contato através de nosso telefone.
Finalizando, o que pude averiguar sobre este infeliz acidente está no texto acima, assim como minhas considerações e sugestões. Não vou dar entrevistas nem atender ao telefone, msn ou e-mail pessoas interessadas neste assunto. Peço que respeitem.
Abraço à todos.
Eliseu Frechou