O CORDELETE – Free solos e o caminho da perdição
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Segue abaixo um texto muito interessante publicado recentemente no site Willo Montanhas, que sempre traz notícias nacionais e internacionais do universo da escalada.
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Tradução livre. Conto de Fitz Cahall publicado na revista Climbing nº 265. Abril, 2008. Parte da matéria especial “Obsession – The Dark Side of Climbing” (Obsessão – O Lado Negro da Escalada), pág. 64.
Tão funcional quanto forte, o nó “oito” é o primeiro e mais importante nó que um escalador aprende – ele o conecta à corda, ao equipamento, e ao parceiro. Entre dois escaladores, um “oito” faz a promessa vital e magnífica, “se você for, eu vou junto”.
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Em algum momento perto do meu 22º aniversário, parei de me encordar. Não era um desejo de morte ou uma loucura por adrenalina que me levou às montanhas. Era frustração. Eu já havia solado por dois anos, mas aquelas ascenções sem corda eram o lance do momento. Parceiros se mostraram muito descompromissados – ou chegavam tarde demais, ou não chegavam. Eles tinham desculpas, ou tinham medo. Escalando sozinho, eu podia acelerar um dia de várias cordadas em algumas horas; eu podia mandar esforços de um mês, em um dia. Eliminando os enroscos, eu tornava o sistema exponencialmente mais eficiente. Se eu podia delinear a escalada desta forma, pensei, porquê não toda minha vida? Era uma direção perigosa, uma direção que complementava minhas forças – um código genético trabalhando pela ética e confiança em minha habilidade – e se aproveitava de minha fraqueza – uma vida de timidez.
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Eu intercalava sessões de treino no lugar de aulas na Universidade de Washington com trabalhos de meio-período escrevendo; e então, deixando apenas notas ininteligíveis na porta da geladeira descrevendo meu paradeiro para colegas de quarto, eu desaparecia. Eu voltava dois ou três dias depois, fraco e queimado de sol. Meus amigos não-escaladores apelidaram de “surtos”.
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Verdade, estava ficando difícil de dizer a diferença. Não que meus projetos de solos estavam se tornando mais arriscados – é que escalar solo havia se tornado a regra. Se eram longos encadenamentos nos picos selvagens de Washington, ou uma simples e exigente cordada que eu havia decorado mentalmente centenas de vezes, os solos tornaram-se rapidamente impetuosos lampejos que absorviam meus pensamentos até que eu finalmente corria para as montanhas. Quando eu chegava, transpirando por ter corrido na trilha, a ansiedade acalmava e meu fôlego estabilizava em um ritmo calmo. Quando começava e enfiava meus dedos inchados em uma fenda, eu nunca estava com medo. Quase sempre parecia que eu estava no lugar certo e na hora certa.
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Escalar não era mais sobre se divertir – era sobre realização potencial. Eu estava ficando mais forte, mas minha capacidade de me conectar com qualquer coisa que não fosse meu pequeno mundo estava murchando. Eu tinha insônia. Aquela clareza cortante que eu atingia solando me esquivava da vida cotidiana. Quando os amigos tentavam me endireitar com algum trabalho, eu sentava balançando minha cerveja e deixava a conversa passar como água ao redor de uma fria pedra de rio. Eu esperava encontrar felicidade em cumes, mas ao invés disso, descobri o óbvio – por natureza, topos de montanhas são solitários. Eu me apaixonara por algo que não podia me amar de volta.
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Uma noite enquanto separava equipos, puxei um cordelete, ainda molhado de gelo alpino derretido. Minhas mãos trabalharam vários nós até que surgiu o “oito”. Torci o cordelete de volta ao oito e fechei a volta. Tinha em minhas mãos um círculo vazio fechado por um poderoso nó. Joguei o loop sob as vigas, deixando-o balançar até parar no ar sufocante da garagem. Deixei o nó pendurado lá com uma pergunta em aberto: o que eu estava fazendo?
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Becca e eu éramos duas pessoas voltadas para direções diferentes, ou pelo menos foi o que dissemos um ao outro na primeira oportunidade. Havia começado a alguns anos como uma paquera de verão. Ela era mais velha, e após graduar, deixou Seattle para procurar neve e uma carreira de ciências. Nenhum de nós lembrava como terminamos nossa relação. Não haviam perdões ou desculpas esfarrapadas. Um dia estávamos juntos, no outro, centenas de quilômetros nos separavam.
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Foi assim por alguns anos. Becca deixou Colorado, conseguiu um trabalho no Alaska, e foi morar com um namorado em Oregon. Enquanto isso eu passei seis meses na Australia, me graduei e mudei para o Arizona.
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Aquele outono, Becca ligou. “Eu saí do Oregon”, ela disse. “Posso ir te ver?” Eu gaguejei minha aprovação. Três dias depois, Becca chegou com o ar de inverno beijando seus calcanhares e perfumada como a promessa de neve. Uma semana depois, ela pediu para ficar.Com alguma cola e compensados de madeira nós tranformamos uma picape Toyota 1993 em uma casa móvel com teto extremamente baixo. Juntos, nós vagabundeamos por nossos primeiros big-walls em Zion. Derrubamos camalots, lutamos com haul-bags, e rasgamos cordas. Durante a noite, sentamos de pernas cruzadas em platôs na parede e mandamos nossas massas semi-prontas com cerveja quente até as estrelas aparecerem e a conversa e as risadas chegarem a conclusões tranquilas. Nosso antigo e pendurado portaledge chacoalhava tão suavemente na brisa do deserto quanto uma canoa à deriva em um lago invisível.
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O campo de trabalho de Becca acabava levando-a para longe durante semanas de vez em quando. Deixado sozinho novamente, eu caía naquela energia maníaca. Eu corria para croquis, anotações e mapas. Pensava no frio, nos termos científicos de eficiência e probabilidade. Então eu empacotava uma mochila com água e comida, e me enfiava em cadeias nevadas. Mentalmente nutrido por minha relação feliz com Becca, eu inventava metas que não passavam de delírios – circuitos de 5.11 na falésia local, ligações entre vias clássicas alpinas moderadas e meu primeiro solo de 5.12 – para mim, gigantescos feitos que eu instintivamente omitia em nossas conversas noturas por telefone.
Um ano depois Becca apareceu de novo em minha porta, nos vimos de volta à estrada. Becca e uma amiga apontaram sua direção 300 pés acima em uma via no Lover´s Leap, enquanto eu me sentei na floresta abaixo, escrevendo. Eu anotava idéias desconexas até que minha mente secava. Tinha um par de sapatilhas e tempo livre. Acima de mim, Becca chegava ao topo da falésia. Estralei meus dedos e enfiei os pés nas apertadas sapatas. Passei uma fina camada de magnésio nas mãos e comecei subir. Sem o peso de uma corda, eu fluí, afundando meus dedos em volta de curvas de granito e agarrando bordas deformadas até que o ângulo suavizou e eu pisei solo seguro do topo.
Segui a trilha abaixo até que alcancei as mulheres, descendo. Quando Becca se virou para me ver, nós dois paramos. Sorri nervosamente. Ela virou e continuou andando. Debaixo de sua fina camiseta, eu pude ver seus ombros magros levantar e tremer. Quando coloquei uma mão em seu ombro, ela arrancou-a e estapeou minha mão para longe. Fiquei ali parado mudo, com uma marca vermelha se formando em meu punho esquerdo. Juntei meus braços em volta dela, cruzei meus dedos até que eles se apertaram formando um nó.
“Nunca mais faça isso de novo”, ela disse, sua voz tremendo de medo. “Você está escalando por nós dois lá em cima”.
Eu congelei. Eu tinha evitado aquela conexão ao máximo. Toda vez que um escalador ata um nó, é a reiteração de uma promessa: vou te segurar se você cair. Eu havia desatado de nossa existência compartilhada. Por mais que eu não quisesse acreditar nisso, a felicidade vinha com seu próprio peso – responsabilidade. Estava claro que eu tinha que fazer uma escolha.
Nos dias de hoje nós existimos na paisagem urbana de Seattle e seguimos os caminhos em nossas carreiras. Os finais de semana são pequenas agarras que nos mantém conectados às montanhas. Depois de horas grudado na tela do computador, ordenando palavras má-intencionadas em sentenças, começo a ter recaídas. Penso em escalar solo, como um adúltero consumido por uma luxúria que atrai.
Então eu me lembro do rosto de Becca, magoado e molhado de lágrimas. Lembro minha promessa não dita – você vai, eu vou. Minha mente se acalma, da mesma forma que se acalmava quando eu sumia entre glaciares e rochas. Eu sorrio, penso em todas as vias compartilhadas, e nas aventuras que ainda estão por vir. Eu posso fechar meus olhos e sentir o cheiro da sálvia no ar do deserto, sentir o portaledge mexendo com o vai-e-vem da respiração da Becca. Eu sinto a força de nós invisíveis que nos mantém ligados.
Fitz Cahall vive em Seattle, onde produz o site “Dirtbag Diaries”. Ele e Becca acabam de celebrar seu primeiro aniversário de casamento.
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Caraca…muito show a história do cara. Acessei o blog informado e tem várias outras , além de ter disponiveis downloads de mp3 tipo trilha sonora.
Valeu.