O ego e a escalada

Tempo de leitura: 6 minutos

O peso do ego na escalada.

Há alguns anos a palavra ego tornou-se vocabulário comum em meios não especializados, fora da psicologia. De maneira informal, fazemos, muitas vezes, referência ao ego quando percebemos demasiado orgulho, arrogância ou vaidade no comportamento ou na maneira de ser de um determinado escalador. “O cara se acha o tal, o cara é puro ego.”, “só escala ou está no meio para encher seu ego”. Esta alusão ao termo, no entanto, é parcialmente correta, trazendo de seu significado apenas uma parte da história. Para falarmos das possíveis influências e relações entre o ego e a escalada é necessário, em primeiro lugar, discorrermos, de forma breve, sobre a definição de Ego.

O que é ego, afinal?

Para a psicanálise, uma das correntes mais popularizadas da psicologia, acadêmica e cientificamente aceitas, o ego é peça central na estrutura da personalidade do sujeito. Segundo esta teoria, trata-se do núcleo da personalidade. Este centro de “o que sou”, ou de “quem eu sou”, recebe influências de duas correntes de energias psíquicas o Id (forças Instintivas) e o Superego (instância moral/cultural/julgadora). Também, de acordo com esta teoria, o ego exerce o controle das experiências conscientes e regula as ações entre a pessoa e o meio, ocupando, portanto, a posição do centro de referência para todas as atividades psicológicas e qualidades da personalidade. Segundo a psicanálise, através do Ego aprendemos tudo sobre a realidade externa e orientamos nosso comportamento no sentido de evitar estados dolorosos e ansiosos e buscar estados de plenitude e satisfação.

É interessante destacar, de modo extremamente sintético e resumido, que, no período de estruturação do ego (na infância e adolescência), falta de amor, violência em diferentes níveis, estilos de educação demasiado rígidos ou permissivos, traumas e determinados estilos de interação familiar e social podem levar a “falhas” na estruturação do Ego. Tais falhas passam a ser parte da constituição da personalidade. Elas nos marcam, elas passam a ser o que somos. Estas pequenas ou grandes fissuras ou falta de alicerces da personalidade vão sendo levadas pelo indivíduo que tenta solucioná-las, saná-las de forma explícita ou implícita ao longo da jornada da vida. Assim sendo, mesmo com tais falhas, seguimos adiante, acompanhando o ritmo de nossa evolução ou escapando dela. Escapando, pois para evoluir sempre temos que retomar e olhar nossos pontos fracos, assim como na escalada.Outro aspecto interessante é que, como afirma Freud, o ego saudável de um indivíduo é aquele que mais tem capacidade de “amar e trabalhar”, e de uma forma ou outra sempre estamos nos embatendo com isto. Assim sendo, independente da força ou madurez de nosso ego, independente do tamanho das faltas ou falhas que tenhamos, buscamos sempre a auto-superação. No dizer popular “ninguém é perfeito”. Podemos traduzir como todos tendo falhas em diferentes níveis em nosso ego e todos buscamos superá-las.

Ego e escalada.

Se consideramos o conceito acima, voltando-nos para a escalada, para termos a capacidade de desfrutar e ter prazer, mantermo-nos seguros e vivos e evoluir nos territórios verticais e montanhosos, necessitamos, com certeza, um ego saudável, um ego maduro e, arriscaria dizer, um ego forte. Minha tese de que, mesmo necessitando um Ego maduro e forte para escalar, com a prática da própria escalada podemos fortificar e amadurecer nosso Ego. Escalar pode nos ajudar a forjar aspectos de nossa personalidade, como a auto estima, a consciência corporal, a auto imagem, a sociabilidade, introversão, a extroversão e o caráter. Desde esta ótica, a escalada funciona perfeitamente como via de auto conhecimento. A escalada também pode fazer-nos acreditar em nossas capacidades para transpor obstáculos físicos e mentais. Através de sua prática, emoções como medo, ódio, alegria, paz, inveja, êxtase, podem ser catalisadas e potencializadas.

O que ocorre, no entanto, é que mesmo funcionando como um potente catalisador de emoções, ou potencializador de emoções, há necessidade de organizar esta intensidade dentro da psiquê. Não basta apenas vivências radicais e, como diz Maslov, “experiências culminantes” para a solidificação do Ego e da personalidade. O que quero dizer é que toda a emoção vivida, toda a euforia da prática da escalada, se não organizada de alguma forma, seja por meio de trocas sinceras e honestas com amigos, ou de maneira mais rigorosa, com psicoterapia, por exemplo, ou de forma sistemática com diversos tipos de meditação e introspeção, corre-se o risco de a escalada funcionar como uma forma de inflar o ego, como “fuga da realidade” ou até mesmo como funcionamento de uma droga. Ou seja, vivemos um turbilhão de emoções, não refletimos nem processamos o campo emocional que é aberto em profundidade, e permanecemos no mesmo nível de consciência de onde partimos. Evoluímos, assim, muito pouco como indivíduos. Temos nas mãos um tesouro de auto conhecimento, e não sabemos muito bem o que fazer com ele. “Injetamos a escalada em nossas veias”, o efeito passa e estamos mais frustrados do que quando começamos.

Desta forma podemos explicar muitas desistências da prática da escalada e afastamentos, totais ou parciais. Desta forma explicamos porque muitos de nós, escaladores, apenas nos aproximamos timidamente da prática, nunca nos aprofundamos, apenas rondando o meio e limitamo-nos com as migalhas do que a entrega total e profunda a esta atividade pode oferecer. Podemos explicar também como, através da escalada, podemos nos tornar seres egoístas, auto centrados e arrogantes, ávidos por mostrarmo-nos um pouco melhores e por auto afirmarmo-nos de alguma forma no meio. Infelizmente, corre-se o risco também, de levar para a prática da escalada valores culturais como os de ter que ser fortes, potentes, valentes eternamente e ter que afirmar isto todo o tempo entre nossos colegas praticantes. Vestimos então uma máscara, que pode ser leve ou pesada (estritamente, o Ego já é uma máscara): A máscara do forte, corajoso, do bom escalador. E mesmo que achemos que não temos nada a dever a ninguém, nem provar nada para os outros, muitas vezes tentamos provar coisas para nós mesmos. O tamanho da rigidez e da seriedade desta cobrança se traduz diretamente no peso do nosso Ego, um peso morto a ser levado para cima de um boulder, parede ou montanha. Quanto mais acredito, colocando-me rigidamente na obrigação de que devo passar oitavo grau, ou fazer tal parede, por exemplo, maior será o peso. E todos sabemos que, quanto mais tralha pesada, em qualquer modalidade, mais desagradável é a ascensão.

A escalada pode correr o risco também de ser transformada em um bem de consumo do tipo: possuo tantos sétimos graus, possuo tantos cumes de montanha, tirei tais e tais colocações em eventos, fiz tais e tais vias arriscadas, grampeei tantas vias. Ao mesmo tempo que isto pode engrandecer-nos verdadeiramente pode tornar-nos cada vez mais distantes de nossa essência ou centro (além do ego). Cada vez me valorizo menos, pois tudo o que sou são “graus de vias”, “esticões”, cumes gelados ou colocações em competições. A falsa sensação de poder me torna cada vez mais vazio, enquanto busco incessantemente mais e mais feitos e peripécias na montanha para auto afirmar-me. Posso ser obcecado pelo dinheiro, por drogas, por sexo, pelo corpo, por posses materiais e ,finalmente, pela escalada. Neste caso, o prazer de escalar limita-se a uma espécie de um êxito auto imposto, o que empobrece totalmente a experiência. Se nosso Ego nos impõe todo o tempo êxito, nossa capacidade de ter prazer e realizar-se diminui. De fato, passamos a sofrer mentalmente com a escalada.

Observando a situação no outro extremo, temos, por exemplo, a afirmação de Alex Lowe: “O melhor escalador é aquele que mais se diverte”. Será que a diversão de que fala Lowe é semelhante à diversão de ir a um parque de diversões, tomar coca-cola ou jogar banco imobiliário? Talvez. Quem sabe, para algumas pessoas (Sem querer subestimar o possível poder de tomar coca-cola, ou de jogar Banco Imobiliário). Mas a “diversão” de que fala o eminente escalador, assim como as várias descrições sobre o prazer sentido na montanha e na escalada, descritos por montanhistas como Messner ou por escaladores como Yuji Hirayama, não são as de um prazer leve. Trata-se de um arrebatamento do ser. Trata-se de sensações viscerais que dão referência à existência.

Conclusão

Finalmente, de forma muito curiosa, as descrições que escutei de diversos escaladores em meu trabalho de conclusão de curso, “Escalada: uma via de auto conhecimento”, sobre o prazer de escalar, assemelham-se com as descrições de escaladores de referência em todo o mundo. Curiosamente também, estas raras e preciosas experiências de êxtase, potencialmente proporcionadas pela escalada, são bastante semelhantes a descrições de estágios que antecedem a “experiências místicas” descritas em tradições milenares como Yôga e Zen Budismo. Estaremos falando da possibilidade de transcendência do Ego através da escalada? Quem sabe, mas antes disso estou seguro de que, muito, realmente muito trabalho de conhecimento, fortalecimento e amadurecimento de nosso Ego (de nossa personalidade) mais “terrena” e “mundana” é primordial e mais que necessário.

Guilherme Zavaschi

Psicólogo e Montanhista

2 Responses to “O ego e a escalada

  • Parabéns pelo Blog velho. Bem interessante! Ano que vem estou querendo passar para vias mais altas e o ES parece bem legal!

  • Fala Rafael.
    Obrigado pela visita e pelo elogio.
    O ES é território das vias tradicionais, de aventura e grande palco para conquistas… seja bem vindo! E precisando de apoio por aqui é só contactar.
    Abraço.

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